INDÚSTRIAS CULTURAIS 2/2

DA ECONOMIA DA REPRESENTAÇÃO À ECONOMIA DA RELAÇÃO 2/2

 

Depois de termos analisado no anterior artigo os aspectos relacionados com a “desmaterialização” dos “conteúdos culturais” e a emergência da “sociedade em rede”, iremos analisar agora a transfiguração ocorrida, durante os últimos quarenta anos, no que diz respeito aos modos de representação e individuação do “sujeito moderno” e como esta mudança alterou, de modo decisivo, a configuração do espaço social e, em particular, do “campo cultural”.

Não é possível entender, de forma adequada, os “prosumers” sem perceber as sucessivas transformações por que passou a “sociedade consumo” ao longo do século XX. Transformações essas que, resultando da convergência de uma diversidade de factores, implicaram a reformulação dos modelos identitários pré-existentes (e as formas de consumo) e precedem a própria emergência da “revolução tecnológica” e da “sociedade em rede” tal como hoje a conhecemos.

Com efeito, seria redutor (e incorrecto) considerar que a nova “economia da cultura” decorre apenas (ou sobretudo) de um qualquer determinismo tecnológico (pese embora a influência que a inovação tecnológica efectivamente teve no sector). As mudanças verificadas na área cultural não fazem mais do que reflectir as transformações, vastas e profundas, que marcaram (e marcam) a transição de paradigma das sociedades industriais da “modernidade clássica” para a “modernidade tardia” (ou “pós-moderna”).

Importa, por isso, ver como a amplitude destas transformações – cuja análise detalhada extravasa o âmbito deste artigo – fez emergir não apenas uma nova configuração económica e social mas teve um efeito directo nas formas de “auto-representação” e de “subjectivação” do “indíviduo” e levaram à formulação de um “narrativa” que, no essencial, teve (e tem) por objectivo adequá-lo ao novo paradigma (desencadeando, por tabela, novas modalidades de articulação social e de paradigmas de consumo).

De um ponto de vista “normativo”, a ascenção e consolidação do modelo politico e ideológico neoliberal, ao consagrar a centralidade do papel do mercado e da iniciativa individual como os eixos fundamentais do desenvolvimento económico, da criação de riqueza e do bem-estar social, instituiu uma “narrativa” na qual cabe ao “individuo” a responsabilidade, única e exclusiva, de construír o seu próprio destino enquanto “agente económico” numa “sociedade de mercado”.

A consequência desta operação teve como resultado configurar o “sujeito moderno” enquanto “empreendedor” tomando como modelo, inicialmente, o ideal “performativo” subjacente ao mundo do desporto e transpondo-o para o campo social e o comportamento individual (como o sociólogo Alain Ehrenberg teve oportunidade de explicitar, nomeadamente em “Le Culte de la Performance”, ed. Calmann-Levy).

Esta capacidade de “desempenho” foi, do ponto de vista conceptual, sendo progressivamente alargada no sentido de incluír não apenas os aspectos mais estrictamente “económicos” (isto é, aqueles que permitem avaliar a “performance” deste “individuo-empresa”  no contexto da dinâmica do mercado) mas também os comportamentais (ou seja, o indíduo moderno é aquele que deve ser capaz de analisar, construir  e organizar a sua configuração interna – a sua “identidade” e “personalidade” e a sua “saúde emocional” – na perspectiva de optimizar as suas relações e competências sociais).

Este “culto da performance”, que colocou o “empreendedor” como modelo e desígnio da acção individual no centro da “narrativa” contemporânea, foi acompanhado pela progressiva retracção (e menorização) dos conceitos e estruturas que tinham constituído os alicerces da “modernidade clássica” até à sua completa dissolução naquilo que Zygmunt Bauman designa como a “modernidade líquida”, ou seja, as “sociedades de mercado” actuais marcadas, entre outros aspectos, pela extrema fragmentação do corpo social, a total atomização da existência individual e uma vertigem de aceleração (pautada pelas tecnologias do “tempo real”) que impelem a vivência contemporânea para um estado de “fluxo” permanente (no qual instituições e indíviduos são obrigados uma incessante renegociação e reformulação de identidades e estratégias).

No entanto, esta nova configuração do “sujeito” moderno teve o efeito paradoxal, como Gilles Lipoversky tem sublinhado, de “libertar” o individuo dos constragimentos normativos e “disciplinares” que configuravam as sociedades da “modernidade clássica” (marcada pela imposição de padrões rigidos de comportamento, gosto, distinção, valores, etc.). A exaltação e glorificação do papel da “autonomia” e da “liberdade” individual como motores do desenvolvimento económico e da modernização das sociedades, através do incessante apelo à sua capacidade de “inovação”e “afirmação”, abriu campo a formas de subjectivização, expressão e auto-representação que permitiram a este “sujeito” pós-moderno  “re-inventar-se” enquanto “autor” e “produtor” da sua própria identidade e narrativa.

Segundo Lipovetsky, esta “libertação” do indíviduo é coincidente com a própria evolução da sociedade de consumo a qual, tendo ultrapassado a sua fase inicial - definida, essencialmente, pela “democratização” do acesso aos bens de consumo – procura, sobretudo a partir da segunda metade do século XX, mobilizar os consumidores no sentido da sua “realização pessoal”, isto é, uma vez garantidas as condições básicas do seu “conforto”, do que se trata agora é de assegurar a cada um os meios de “ser feliz”. Não é, portanto, por acaso, que a “felicidade” se torna a grande força mobilizadora do consumo contemporâneo (seja de modo directo, através do acesso a produtos e serviços que pretendem não apenas satisfazer mas “optimizar” a sua saude e bem estar, quer indirecto através do consumo de bens e serviços cujo traço fundamental é a sua capacidade em fazer os indivíduos aderir a “marcas” as quais, mais do que venderem um produto, apelam a um imaginário e instigam a uma adesão, por via dos “valores simbólicos” que promovem, a “modelos de comportamento” que garantam a sua plena“realização pessoal” e a afirmação da sua genuína e autêntica “identidade”).

Para efeitos do objecto em análise neste artigo, importa, então, sublinhar que não é possivel compreender a dinâmica da “economia da cultura” contemporânea sem perceber como emergiu este indivíduo/consumidor. E, por arrasto, torna-se, deste modo, claro que é na confluência desta nova configuração do “sujeito pós-moderno” com a eclosão da “revolução tecnológica” e das “sociedades em rede” (e do novo modelo económico e social que lhe subjaz) que se situa a mudança de paradigma em curso.